quinta-feira, 6 de junho de 2019


ENTREVISTA CONCEDIDA PARA O JORNALISTA FERNANDO POFFO EM 30-03-2019


Marbras et Mundi desde 1999 batalhando pela renovabilidade no surfe


1) Como surgiu a ideia de estudar esses resíduos especificamente? Qual foi a maior surpresa do estudo?

O embrião dessa ideia surgiu em 1985 quando produzia pranchas com um amigo e não me conformava com o impacto ambiental gerado pelos resíduos químicos gerados na produção de pranchas de surfe. Nessa ocasião usei resíduos pulverizados de poliuretano (PU), fibra de vidro e resina de poliéster misturados com cimento e areia para cobrir o piso da oficina, que era numa casa de dois andares, onde obtive feedback positivo da moradora do primeiro andar, em relação ao isolamento acústico (e também térmico) da edificação que melhorou substancialmente. Também nesse ano consegui fazer com um amigo o isolamento de um estúdio de gravação com os resíduos das pranchas, tudo feito de forma empírica e experimental.  Depois evoluiu em mais dois momentos: o primeiro quando trabalhei na Clark Foam em 1989/90, onde tive oportunidade de fazer o meu primeiro experimento de uma blenda de PU reciclado, que serviu de matéria-prima para a produção de uma miniatura de uma prancha com material recuperado e dez anos depois quando iniciei a jornada do Projeto Marbras et Mundi e fui buscar conhecimento científico para fundamentar a iniciativa, a princípio realizando entrevistas com químicos e engenheiros e posteriormente realizando mestrado na engenharia ambiental da UFSC, que gerou a dissertação: Alternativas de Recuperação dos Resíduos Sólidos Gerados na Produção de Pranchas de Surfe, onde foram feitos diversos experimentos de produtos utilizando os resíduos das pranchas de surfe como matéria-prima de segunda geração econômica ou carga.

A maior surpresa foi identificar no mercado um aditivo antichamas, que me possibilitou utilizar com segurança, os resíduos de pranchas de surfe, na produção de blocos e outros artefatos de concreto.

Paulão com galera da Clark & Bennett Foam em 1990


2) Como é o trabalho da Marbras Et Mundi?

O projeto vem desde 1999 desenvolvendo um sistema de gestão ambiental, com o propósito de minimizar a geração dos resíduos, o consumo de água e energia nos processos produtivos, por meio do emprego da tecnologia de produção mais limpa. Foram criados também um protocolo específico de medicina ocupacional para esta atividade, sistemas de controle da poluição nos processos produtivos e alternativas de recuperação dos resíduos não elimináveis da produção das pranchas de surfe. A ideia está centrada em consolidar um processo de certificação ambiental nas fábricas de pranchas, gerando benefícios econômicos, sociais e ambientais. Atualmente pela falta de subvenções, o projeto prossegue com pesquisa científica e produção de protótipos.


Paulão surfando com sua 6'2" Roberto Ribeiro, com bloco de EPS reciclado


3) O surfista e o shaper têm uma conexão especial com a natureza e muitos participam de ações de limpeza de praias e tudo mais. Mas não é comum o engajamento com essa questão do resíduo das pranchas, tanto na fabricação como no descarte. Por que você acha que isso acontece?

Primeiro pela falta de fiscalização, porque todos os resíduos químicos sólidos, as emissões (gases) e os efluentes (água contaminada) resultantes dos processos produtivos das pranchas de surfe são considerados pela NBR 10.004 (ABNT) perigosos, pelo seu potencial tóxico, carcinogênico, inflamável e perfurocortante.  Nas oficinas de pranchas de surfe, a maioria dos trabalhadores não usam equipamentos de proteção individuais adequados, um sério problema de insalubridade no ambiente de trabalho, porque o risco de malefícios para o organismo humano é uma realidade e já foram registrados casos de câncer e enfisemas pulmonares em indivíduos sujeitos a intensa exposição. Como estas descargas não são recuperadas e destinadas para lixões ou aterros simples, que não oferecem controle ambiental, os materiais contaminam e percolam pelo solo provocando danos ambientais irreversíveis nos mananciais subterrâneos e mais a descarga de poluentes atmosféricos.


Tabela que estratifica os resíduos gerados em cada etapa de produção de uma 6'


Segundo porque vivemos em uma sociedade viciada, que tem muita dificuldade em aceitar a cultura industrial com características renováveis, pois o que impera é a preponderância exclusiva da variável econômica, onde o social e ambiental não são cogitados nos projetos empresariais e finalmente porque no surfe prevalece um comportamento hedonista...

4) Na sua opinião qual o melhor destino que se deve dar a EPS e PU em uma fábrica de pranchas? O que precisa ser feito para que comecem a fazer esse trabalho?

O melhor destino sem dúvida é a reciclagem não só pelo viés ecológico, mas também pelo social e econômico, porque está mais do que comprovado que a cadeia econômica da reciclagem gera oportunidade de trabalho e renda e hoje em dia com as máquinas de shape, o processo de recuperação dos resíduos de EPS e PU ficaram mais simplificados, porque o material gerado pela usinagem dos blocos já sai na granulometria ideal para ser empregado nas tecnologias de valorização dos resíduos de pranchas de surfe. Entretanto, como ainda não dispomos de consolidadas usinas de reciclagem de EPS e PU, a melhor forma de deposição final de todos os dejetos industriais gerados nessa atividade fabril é o aterro industrial, que dispõe de recursos de engenharia para aterrar resíduos perigosos sem impacto para o ambiente.


Bloco de PU reciclado


5) Qual o melhor destino para uma prancha velha ou quebrada?

A criatividade é infinita! Tecnicamente falando podem ser pulverizadas e empregadas como carga em diversos processos industriais de produtos fabricados em larga escala, como piscinas, mantas asfálticas, artefatos de concreto, piscinas e caixas d’água de fibra de vidro, entre muitos outros.

São materiais riquíssimos que podem ser transformados em belas obras de arte, manufatura de tabuletas, painéis, móveis, pranchas de body surf, raquetes de frescobol, shapes de skate, bancadas, prateleiras...


 Bloco de concreto com resíduos de pranchas

6) Quais as melhores alternativas para quem quer uma prancha que não seja feita de EPS e EPU?

Hoje em dia existem biopolímeros que minimizam os impactos, porém os plugs ainda não foram desenvolvidos o suficiente para manterem a mesma conformidade do PU com tolueno de isocianato, porque não propiciam um desbaste homogêneo. O PU e EPS são recicláveis, mas os processos são complexos e demandam eficiente e onerosa logística reversa e são processos técnicos que não permitem improvisações.

As pranchas com fibras vegetais (bambu, linho, agave, balsa...) ideologicamente seriam ideais, afinal de contas sua descarga pode ser compostada, mas novas variáveis despontam nesse rumo. No aspecto do desempenho, essas pranchas nunca chegaram aos pés das tradicionais de PU e também as de EPS. Mais dois aspectos inquestionáveis são vislumbrados, o primeiro é o plano de manejo sustentável que deveria ter sido feito há pelo menos 10 ou 20 anos atrás e não foi feito e pelo que me consta não existe nenhum manejo em voga de nenhuma das fibras utilizadas, a não ser o bambu que cresce naturalmente quase como mato.

O outro aspecto é diretamente econômico e indiretamente ecológico e se chama escala de produção. Imagina se de uma hora para outra toda a nação mundial do surfe se contamina com o vírus 'verde' e resolve surfar com pranchas de fibras naturais. Em pouco tempo as espécies vegetais se extinguiriam não teríamos material e a demanda não seria atendida...

A minha busca como pesquisador e ativista da responsabilidade ecológica na indústria do surfe hoje em dia, sem abandonar os trabalhos já desenvolvidos é a de perseguir e encontrar a 'quartaessência', nome cunhado para inventar materiais e sistemas produtivos distintos dos já praticados (EPS, PU e fibras vegetais) utilizando insumos sintéticos e biodegradáveis, com  conformidade que se equiparão ou superarão o desempenho e as propriedades das pranchas feitas com PU e EPS.


Coleta de resíduos de pranchas de surfe para experimentos

7) Você indicou a produção de concreto com os resíduos de EPS e EPU. Quais outros produtos podem ser feitos, que você conhece com esse material reciclado das fábricas?

Já realizamos diversos protótipos de empregar os resíduos como matéria-prima para artefatos de concreto (blocos, vigotas e guias de calçada), blocos reciclados de PU e EPS para pranchas de surfe ou placas de isolamento termoacústico para lajes pré-moldadas, sancas, molduras, boias para maricultura. Há cinco anos encomendei uma prancha 6’2” com um bloco de EPS reciclado, que hoje ainda funciona perfeitamente.


Geração Estimada Anual dos Resíduos da Indústria do Surfe
ITENS
MUNDO
BRASIL
FLORIANÓPOLIS
Produção de Pranchas
3.314.400
207.138
57.990
Resíduos Gerados (ton)
25.255.728
1.578.392
441.884
Valor em (USD)
505.114.560
31.567.840
8.837.680
Fonte: Pesquisas Projeto Marbras et Mundi (2019)


Fluxo ilustrativo do processo de reciclagem


2 comentários:

  1. Sensacional a pesquisa. Comecei a compartilhar da mesma angústia que você já tem desde 1990. Gostaria de poder aprender um pouco sobre.

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    1. Salve irmão! Sim a problemática é muito séria e infelizmente a variável ambiental é pouco cogitada nos processo produtivos. Aqui mesmo no blog tem o artigo abaixo que contém informações bem interessantes sobre este assunto. Confira no link abaixo, aloha! https://marbrasetmundi.blogspot.com/2014/11/producao-ecologica-de-pranchasde-surfe.html

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