domingo, 1 de maio de 2011

Marbras Et Mundi


Trabalhando há 10 anos pela sustentabilidade na indústria do surfe...

O embrião do projeto foi iniciado em 1989, quando trabalhei na Clark Foam e após alguns ensaios preliminares sugeri que fosse coletado o pó residual de poliuretano nas fábricas para ser empregado na produção de blocos genéricos, na época mal se reciclava papel e a idéia foi considerada surrealista e não seguiu seu curso. Dez anos depois, em janeiro de 1999 a Surfer publicou uma reportagem denominada “Dirty Deeds Done Dirt Cheap”, onde entrevistava Greg Loehr, um shaper californiano inovador e pioneiro na busca de métodos de produção mais responsáveis, sob o prisma ecológico. No mês seguinte o jornalista Jonas Furtado lançou na Fluir a matéria “Desperdício nas Oficinas”, que fez uma adequação da matéria anterior para a realidade brasileira.
Essas intervenções jornalísticas nos motivaram a resgatar o projeto iniciado na Clark Foam, assim ele foi atualizado para o momento presente, começando como uma proposta de reciclagem dos resíduos gerados na fabricação de pranchas de surfe e evoluindo durante esses 10 anos de trabalho, para a construção e formatação de um modelo de produção sustentável voltado para a produção de pranchas, que pode ser resumido em algumas etapas distintas, como: gestão ambiental, medicina ocupacional, controle da poluição e tratamento ambiental das descargas não elimináveis, através de processos de recuperação dos resíduos sólidos, tratamento dos particulados, saneamento das emissões e controle dos efluentes, ou seja transformar um sistema aberto e poluente, num fechado e com efetivo controle ambiental nos processos produtivos, com o objetivo de lançar no mercado uma prancha certificada.
Em 1985 quando fabricava pranchas, me incomodei bastante com os resíduos gerados, aí ao invés de jogá-los fora fui estocando-os num quartinho na oficina, até o dia que o espaço físico se esgotou e na falta do que fazer com toda aquela montanha de lixo tóxico tive uma idéia totalmente louca de traçar os resíduos com cimento e areia, para fazer o contra piso da oficina. Como era uma casa de 2 andares, dias depois a vizinha de baixo veio nos presentear com um bolo, por termos eliminado o excessivo e inconveniente ruído proveniente da plaina e da lixadeira. Neste momento empiricamente percebi que este material possuía excelente propriedade de isolamento termo-acústico e aí comecei a realizar uns testes e entrou na jogada um amigo que estava construindo um estúdio de gravação e para fazer o isolamento do ambiente utilizamos mais uma vez os resíduos das pranchas e o resultado foi surpreendentemente muito positivo.
Com essas experiências ingressei na Clark Foam e iniciei um trabalho de desenvolvimento de produto, sob a supervisão do Eduardo Faggiano (Cocó) e em parceria com o Neco Carbone e lá produzi um protótipo de uma pranchinha usando resíduos de poliuretano, com resultados consideravelmente satisfatórios e assim sugeri que aprofundássemos as pesquisas, mas infelizmente a idéia não foi aprovada, apesar do apoio dos meus colegas e assim ficou congelada até a veiculação das reportagens já citadas. Na seqüência ingressei na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), para fazer mestrado na engenharia ambiental, porque senti uma forte necessidade de fundamentar cientificamente as idéias concebidas. Desde 1999 venho pesquisando a fundo, elaborando soluções para os problemas e articulando sócio-economicamente o projeto.
Os danos que esses resíduos podem causar à natureza são muitos e se eu for descrever todos, necessitaria de um livreto, mas é incontestável que sendo um lixo inflamável e tóxico ele não poderia ser descarregado pela coleta domiciliar e enterrado em aterros simples e lixões. Este procedimento equivocado gera impactos irreversíveis no solo e nos lençóis freáticos, fora a insalubridade no momento da produção, já que os ambientes internos não são herméticos, permitindo a migração de partículas para o meio externo e que a maioria dos trabalhadores não utilizam os equipamentos de proteção individual (EPI’s) adequados, apesar das características pérfuro-cortantes e carcinogênicas desses resíduos. Outro fator relevante é o fato de serem resíduos com baixa densidade, que ocupam muito espaço físico nos aterros, quando enterrados, na falta de oportunidade de recuperação dos dejetos, já que as tecnologias desenvolvidas pelo projeto Marbras Et Mundi ainda não foram implementadas (somente por falta de visão empresarial que não aloca investimentos para esta causa), um fabricante de pranchas responsável deveria no mínimo coletar e armazenar os resíduos com o maior cuidado possível e encaminhá-los para um aterro industrial, pois este está preparado para encapsular de forma ambientalmente correta estes rejeitos, sem prejuízo para os mananciais subterrâneos e para o solo, pois possui mantas de impermeabilização, sistema de captação e tratamento de gases e efluentes tóxicos, além de outros recursos de engenharia para prover o saneamento correto do lixo industrial perigoso gerado na produção de pranchas.
Essa realidade não se restringe somente ao Brasil, mas na França existe uma associação (Association Clean Shaper), que vem empregando recursos, tempo e energia para tentar reverter este quadro, o franco-brasileiro Alexandre de Sonis é um dos responsáveis e já trocamos bastantes figurinhas sobre este assunto, quando eles começaram as suas atividades em 2003. O projeto Marbras Et Mundi vem desde o ano de 1999 disseminando a sustentabilidade para estudantes, surfistas, fabricantes e pesquisadores do Brasil todo e de diversas regiões, como Argentina, Uruguai, México, Costa Rica, Estados Unidos, França, Espanha, Inglaterra e Austrália. Nossa preocupação não é monopolizar o conhecimento e sim estimular novas intervenções ao redor do planeta, para que esse problema seja eliminado, pois se a geração do lixo é um processo coletivo, sua solução não pode ser de outra forma. Nosso compromisso é sócio-ecológico, técnico-científico e não capitalista, não me incomodo se outras pessoas aplicarem o que desenvolvi ao longo desses anos, pelo contrário me felicitará e muito.
Os resíduos poderão ser recuperados sem prejudicar o meio ambiente através da metodologia do “berço ao berço”, que transformam os rejeitos industriais perigosos em matéria prima de segunda geração econômica, para compor um novo ciclo de produção. A criação de produtos provenientes do lixo poderá “fechar o circuito” da cadeia produtiva de uma empresa, pois além de minimizar ou eliminar impactos ambientais, possibilitará a redução dos custos de tratamento, minimizará o despejo de dejetos em aterros simples e oportunizará a geração e criação de novos postos de trabalho, conseqüentemente, trazendo mais divisas para a empresa, mais benefícios para o meio ambiente, para a saúde pública, sendo uma opção ética de comportamento empresarial.
No Brasil são produzidas anualmente cerca de 50.000 pranchas de surfe e de 50 a 70% do material consumido no processo produtivo é descartado. Este montante corresponde a um prejuízo financeiro superior a US$ 7.000.000 e mais de 380 toneladas de substâncias tóxicas e inflamáveis depostas nos "lixões", ou aterros simples, sem qualquer tratamento ambiental. A necessidade de se recuperar estes rejeitos gerou uma investigação científica, com o propósito de tornar a prancha de surfe um produto sustentável e ecologicamente responsável. O projeto consiste basicamente na sistematização de uma metodologia para minimizar o consumo de água, energia elétrica e a geração dos resíduos no processo fabril das pranchas de surfe, além de pesquisar e criar tecnologias para a sua recuperação. É possível utilizar estes resíduos na construção civil como substituto parcial de agregados, na fabricação de artefatos de concreto; incorporá-los com resinas, após pulverização dos rejeitos, na produção de uma blenda de poliuretano recuperado, que poderão ser empregados na produção de pranchas de surfe genéricas ou painéis de isolamento termo-acústico, utilizados em casas noturnas ou estúdios de gravação. Os produtos citados também podem ser produzidos através de termo-prensagem, onde os resíduos são aquecidos e prensados, sendo o processo mais clean, por não utilizar água ou qualquer tipo de insumo e demandar pouca energia. Também é possível incinerar os resíduos, com controle ambiental, para recuperar a sua energia, em função do alto poder calorífico, na produção de cimento, em Fornos de Clínquer.
Valorizar resíduos de materiais provenientes de recursos naturais não renováveis é um emergente desafio para a humanidade neste início de milênio, em função da escassez de áreas de aterros e a necessidade inadiável de preservação dos Ecossistemas, através da prática de uma ecoeficiência nos processos industriais.
Esta iniciativa inédita, ao nível mundial, visa promover um processo de educação ambiental e práticas ecológicas na indústria do surfe com o objetivo de transformar a prancha e seus processos produtivos, numa atividade sustentável e saudável, pois toda indústria que gera poluição ou toxicidade pode e deverá ser redimensionada, a fim de se evitar prejuízos à saúde pública e ao ambiente.
A idéia matriz é que as fábricas de pranchas de surfe se disponham a realizar em suas instalações, um processo de gestão ambiental, para poder obter uma certificação e um selo ecológico criando no mercado um produto diferenciado, com benefícios coletivos, espirituais, éticos, ambientais e sócio-econômicos.
Tive a oportunidade de realizar um estudo onde estimei que 107 toneladas (geração bruta de Florianópolis em 2001) de resíduos viabilizam a produção de 180 mil blocos de concreto, com uma lucratividade de aproximadamente 10%, sendo necessário confeccionar no mínimo 72 mil blocos para se atingir o ponto de equilíbrio, com uma rentabilidade de 18%. Economicamente estes números são excelentes e levando-se em conta, que as tecnologias já foram cientificamente validadas, a não implementação do projeto Marbras Et Mundi é um fenômeno cultural, pois infelizmente existe uma priorização dos investimentos aplicados no surfe em ações que envolvem a mídia, moda, campeonatos, equipes de surfe, festas, baladas, concursos de biquíni e muitas frivolidades.
Sinto que impera em nossa sociedade o que batizei de “Complexo de CTI” (atuar somente quando a situação se apresenta num estado terminal ou caótico), portanto a nossa comunidade, os fabricantes de pranchas e de blocos somente se lembrarão do projeto daquele maluco que tá em Floripa que sempre manteve uma atitude preventiva, quando acontecer um embargo, como ocorreu com a Clark Foam em 2005, aí será a fase de curar gangrena com Band aid.
Enfim, aprendi na vida que a humanidade só aprende na dor e infelizmente essas questões não fugirão à regra, quando acabar de fato (já está acabando) a água, quando abrir um vulcão sob nossos pés ou sermos atingidos pela grande onda que varrerá do mapa as cidades litorâneas, então a galera começará a se mobilizar, mas aí poderá ser tarde para mitigarmos os problemas ambientais...
Por outro lado aprendi uma coisa dentro do mar no momento de maior sufoco de minha vida como surfista, diante de uma bruta massa d'água, na iminência de me engolir e naquela normal hesitação de abandonar o barco ou encarar o perigo de frente me veio na mente uma frase que é a gasolina da minha vida... É melhor morrer tentando do que morrer chorando... Aí enterrei na água o bico da minha prancha tomei um caldo pavoroso, mas consegui passar aquele momento crítico, assim como venho enfrentando dia após dia as adversidades e percalços de tocar adiante um projeto inovador e arauto de um novo paradigma no surfe.
Geralmente a fabricação de pranchas é um processo industrial encarado de forma muito empírica, claro que existem algumas e poucas exceções. Apesar de estarmos em pleno século XXI, onde os sistemas industriais evoluíram de forma exponencial nas últimas décadas, o que constatamos é que a maioria das oficinas opera praticamente da mesma forma que quando surgiram há cerca de 40 anos atrás. Outros segmentos da indústria do surfe progrediram de forma espetacular, como a performance dos atletas, estruturas dos campeonatos, mídia, design das pranchas e assim investimentos da ordem de bilhões de dólares são injetados anualmente para suprir um mercado cada vez mais exigente e consumista e por outro lado nem um centavo é aplicado para tirar da idade pré-histórica a construção dos nossos brinquedinhos e muito menos de tornar os seus processos produtivos e o seu produto final sustentável e menos impactante.
É possível perceber o paradoxo vigente em nossa atividade, pois um esporte que depende integralmente da natureza deveria seguir um padrão mínimo de produção industrial ecologicamente responsável e um consumo consciente, que pudesse harmonizar as variáveis éticas, ambientais, sociais e econômicas. Por outro lado, o surfista e o empresário deste setor vêm sendo qualificados como cidadãos responsáveis sob o ponto de vista ambiental e que exercem a sua cidadania lutando pela defesa do ambiente costeiro em mutirões de recolhimento de lixo nas praias e participando de movimentos sociais de conservação ambiental frente à especulação imobiliária. Em tese, o segundo aspecto se sustenta: inúmeros abaixo assinados são criados e disseminados com a finalidade de controle na especulação imobiliária, porém no que tange ao aspecto da conservação ambiental, o assunto gera séria e questionável controvérsia. Como o surfista pode ser considerado ecológico se o seu equipamento básico, a prancha de surfe gera, quando fabricada, cerca de 5 kg de resíduos perigosos descartados no ambiente? Que atitudes são tomadas no contexto empresarial ou pessoal para reverter este quadro? Como são destinadas as pranchas obsoletas? Para ilustrar este questionamento, serve de exemplo a situação que estou vivenciando, que nos últimos 5 anos, retirei mais de trinta pranchas quebradas e abandonadas nas praias de Florianópolis, por outro lado, apesar da Clark Foam ter sido fechada, tanto da parte dos fabricantes de blocos, pranchas, de surfwear, empresários e cartolas, o assunto sustentabilidade em nossa atividade é considerado tabu, por incrível que pareça. Os surfistas têm boa percepção da sua função no processo de manutenção ecológica, porém a agressividade do modelo econômico, no culto ao consumo, sobrepõe ações inibidas e desconectadas dos indivíduos, de maneira geral. Para finalizar apresento aqui em primeira mão o resultado parcial mais significativo de uma pesquisa que realizei ano passado, onde foi questionado o porquê do surfista ser considerado um cidadão ecológico, e sem me causar surpresas 64% dos entrevistados responderam que é pelo fato do surfe ser praticado em um meio natural. Este dado reflete uma condição baseada em um modelo de representação que é gerado pela interação de um grupo social, mediante uma cognição concebida e disseminada pelos formadores de opinião, sendo que esta é aceita passivamente pelos atores envolvidos, sem maiores ponderações.
As metodologias desenvolvidas propiciam a construção de uma prancha de surfe genérica, com custos um pouco menos elevados e uma conformidade ideal para serem destinadas aos surfistas iniciantes, pois no produto reciclado, algumas propriedades físicas são alteradas, não sendo recomendadas para a utilização por surfistas que necessitam de alto desempenho em suas performances. Esta diferença poderá ser minimizada ou eliminada na continuidade das pesquisas.
Tanto as pranchas confeccionadas com resina de poliéster e poliuretano, como as produzidas com resina epóxi e poliestireno expandido, popularmente conhecido como isopor, necessitam de intervenção ao nível de gestão ambiental, pois se o poliuretano é mais impactante que o poliestireno, a resina epóxi é mais abrasiva e se utiliza da poliamida, como endurecedor, que é uma substância química muito nociva para a saúde pública, como para o ambiente.
Com o caos mundial pressionando o cognitivo da população, a tendência é que a fiscalização ambiental aperte o cerco com medidas coercitivas. Poderíamos adotar uma atitude preventiva e não ficar esperando que um organismo ambiental, siga o exemplo da EPA (referência mundial em fiscalização e controle ambiental), quando cerrou as portas da Clark Foam, na Califórnia e encerre as atividades de uma fábrica de blocos ou do fabricante das nossas “naves” prediletas. A poluição deste setor é muito séria e se não tomarmos uma decisão responsável, em um futuro próximo nossa indústria estará seriamente ameaçada.
Na minha jornada de pesquisador e ambientalista tive a oportunidade de presenciar em diversas ocasiões órgãos ambientais de diversos países do mundo, tomarem na seqüência atitudes idênticas às da EPA, assim esta ameaça é só uma questão de tempo e coloco a seguinte carta na mesa, se não adequarmos a produção das pranchas de surfe ou lançarmos alternativas mais sustentáveis, num período mínimo de 2 anos algum embargo acontecerá, como nossa atuação sempre foi preventiva, o mercado precisa tomar uma atitude e aproveitar que já existe uma solução prática e construída com bases científicas, portanto o melhor conselho que posso fornecer é que os empresários e autoridades do surfe brasileiro e mundial venham a pautar o mais rápido possível, em seus planejamentos, uma parceria com o projeto Marbras Et Mundi para que a sustentabilidade seja uma realidade e não mais uma Utopia Realizável...
É uma questão que extrapolou a condição antropológica, pois denota uma necessidade intrínseca e emergente de promovermos uma faxina em nosso Karma, pois se torna insustentável mantermos uma atividade esportiva, que depende exclusivamente da natureza precedida de enorme descarga poluente.
Paulo Eduardo Antunes Grijó – Coordenador do Projeto Marbras ET Mundi
paulosurfrecycle@yahoo.com.br